sexta-feira, 3 de agosto de 2012




Yara Rocca e uma de suas paixões

Por Karina Conde
Gatos. Há quem ame tê-lo como animalzinho de estimação e há os que odeiam o bichano. Seu ar misterioso e seu espírito livre lhe renderam a fama de traiçoeiro e egoísta.

A jornalista Yara Rocca é dessas pessoas loucas por gatos, tanto que até escreveu o livro “Deixe um gato surpreender você”, uma apaixonada defesa desse animal às vezes incompreendido.
A "gateira" fanática tenta explicar a quem não gosta de gatos que eles são, sim, companheiros maravilhosos, mas que, diferentemente dos cães, às vezes precisam de um "manual de instruções" para serem entendidos e amados.

Além dos dados históricos sobre gatos, Yara fala das regras para quem quer tê-los em casa, lista de doenças felinas, curiosidades e textos engraçadinhos sobre bichanos. Ficamos sabendo, por exemplo, que existem cerca de 14 milhões de gatos no Brasil (contra 27 milhões de cães) e que o preconceito de muitas pessoas contra os gatos tem origem histórica na Idade Média. Alguns mitos, como o das sete vidas (no Egito, eram nove), são explicados com muito humor.

Um dos pontos altos é o texto (adaptado) do cronista Ruy Castro(leia no final do artigo)que investiga o suposto sentimento "antigatos" de Walt Disney, que teria predisposto gerações de crianças contra os gatinhos. Afinal, você nunca tinha parado para pensar por que é que, no filme "Cinderela", o gato se chamava Lúcifer?

E o também cronista Arthur da Távola, no saboroso "Simplesmente Gatos", acha uma definição bem bacana para os bichinhos: "O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano, mas se comporta como um lorde inglês."

Quem está ensaiando entrar no mundo dos gatos ou quem já é elurófilo (amante de gatos, sabia?) já tem uma boa dica de leitura.

RUY CASTRO, para O Estado de São Paulo

Em mais um soez, solerte e insidioso filme em cartaz, destinado às crianças, os gatos voltam a ser tratados como vilões. O filme é O Pequeno Stuart Little (título brasileiro criado por algum fã analfabeto dos Irmãos Brothers). O herói é um rato não muito diferente do Topo Giggio, de infecta memória, e os gatos em cena passam o filme tramando contra ele - até a vitória final do rato, com a punição e submissão dos gatos. Onde foi que você já viu essa história? Em, literalmente, milhares de outros filmes, desenhos animados e histórias em quadrinhos.

Você já a viu em todos os desenhos de Frajola e Piu-Piu a que assistiu. Neles, Frajola é sempre mostrado como um gato malévolo e burro, cujo único objetivo na vida, o de comer Piu-Piu, frustra-se a cada tentativa pela suposta inteligência superior do canário. Frajola e Piu-Piu, que já existiam separadamente no cinema, foram acoplados em 1949 por um desenhista da Warner Bros., Friz Freleng. Ou seja, há 51 anos as crianças do mundo inteiro vêm sendo ensinadas que, mesmo prevalecendo-se de seu tamanho, força e agilidade para atacar um tíbio canário, os gatos não passam de uns grandes palermas.

Mas seria o canário assim tão tíbio? Nos 41 desenhos de Frajola e Piu-Piu criados por Freleng de 1949 a 1964 (e exibidos dia e noite pela televisão, até hoje, dando a impressão de que foram centenas), há algo mais por trás da aparente infantilidade do herói ("Eu acho que vi um gatinho " ) Na verdade, Piu-Piu é um cínico e um sádico. Os desenhos o mostram invariavelmente equipado com recursos para fuzilar, retalhar, esmagar, picotar e achatar Frajola - e isso é considerado ético pelos desenhos animados, nos quais o "mais fraco" sempre derrota o "mais forte". Mas Piu-Piu (cuja popularidade foi reativada há pouco pela Warner, que o estampou mundialmente em camisetas, jaquetas, meias, tênis, adesivos e bonecos) não é o único personagem de uma campanha que ajuda a diminuir, humilhar e provocar um desapreço das crianças pelos gatos.

O rato Jerry, da dupla Tom e Jerry, talvez seja ainda pior. Sozinho ou com seu assecla, o camundongo Espeto, Jerry torturou o honesto, sincero e crédulo gato Tom em nada menos que 160 desenhos para o cinema, de 1940 a 1967. Os criadores da dupla foram Bill Hanna e Joe Barbera (aliás, responsáveis também pelo empobrecimento do desenho animado com a técnica de "animação simplificada", que inventaram quando passaram a produzir para a televisão nos anos 60). Os últimos desenhos já foram delegados por Hanna e Barbera a bagrinhos, mas o conceito inicial da série nunca se alterou; ao tentar proteger sua casa da presença do parasitário e nojento Jerry, Tom é eletrocutado na tomada, incendiado na lareira, afogado na pia, esmagado por pianos e explodido através do teto. Meninos insensíveis e perversos assistem a isso dando risotas diante da TV - e provavelmente tentam repetir tal violência com seus próprios gatos.

Não há gatos heróis nesses potentes formadores de opinião, que são os desenhos animados. Os heróis são sempre os cachorros, os coelhos, os patos e, incrível, principalmente um rato mudo que não faz um filme há 47 anos e, mesmo assim, continua a ser símbolo de um império desenhístico - você já ouviu o som da voz de Mickey Mouse alguma vez? O próprio Walt Disney (na vida real, racista e anti-semita, mas sempre cioso de que seu estúdio não ofendesse ninguém) não conseguia esconder o preconceito: em seus filmes, o cachorro é o animal nobre (vide A Dama e o Vagabundo e 101 Dálmatas, para não falar dos 44 desenhos de Pluto e os 42 de Pateta feitos entre 1940 e 1965). Nada contra isso e Walt podia gostar dos animais que quisesse. Acontece que quase todos os seus desenhos mais famosos são também violentamente antigatos.

Em Pinóquio, um dos vilões é um gato debilóide e imundo chamado Gideão, que ajuda a raposa João Honesto a engambelar o boneco. Em Cinderela, o gato Lúcifer, gordo e traiçoeiro, é uma assustadora ameaça aos ratos Gus e Jaq.

Em Alice no País das Maravilhas, o gato Cheshire está longe de ser um personagem simpático - sabe que Alice vai se estrepar e não faz nada para impedir. Em A Dama e o Vagabundo, Si e Ao são os dois siameses que destroem as cortinas, atacam o canário e o peixinho dourado e investem contra o bebê da família, provocando a confusão que mandará Lady para a carrocinha. Em A Espada Era a Lei, a bruxa Madame Min transforma-se, claro, num gato parecido com ela. E, mesmo em Os Aristogatas, que deveria ser um filme pró-gatos, há em cena um punhado de gatos vadios e desagradáveis, sendo que o herói acaba sendo, na verdade, um rato chamado Roquefort. E é bom lembrar que, no primeiríssimo desenho de Mickey, Steamboat Willie, de 1926, ele tortura e executa um gato girando-o pela cauda e atirando-o ao mar. Pensando bem, Disney não podia mesmo gostar de gatos - ficou rico construindo ratoeiras humanas como a Disneylândia e a Disney World.

Mas não sejamos injustos com os desenhos animados. É o cinema em geral que nunca teve uso para os gatos - exceto para mostrá-los como aliados de bruxarias (o gato de Kim Novak em Sortilégio de Amor), símbolos de decadência (o gato na abertura de Pelos Bairros do Vício), sinônimo de neurose (Elizabeth Taylor, Maggie the Cat, em Gata em Teto de Zinco Quente) e instrumentos de vingança (as várias versões de O Gato Preto). Mesmo num filme em que os gatos nada têm a ver com o peixe, como Babe, o Porquinho Trapalhão, um deles é mostrado num papel negativo - e olhe que o herói é um porco.

É normal que o cinema nunca tenha feito pelos gatos o que fez por incontáveis cachorros, desde Lassie e Rin-Tin-Tin; gatos recusam-se a ser atores e é impossível treiná-los para fazer coisas que cachorros, focas e até elefantes aceitam com a maior naturalidade, como trepar em banquinhos, dar cambalhotas ou equilibrar bolas no nariz - a inteligência, dignidade e independência dos gatos não lhes permite prestar-se a esses papéis humilhantes. Só é possível fazer um filme como O Pequeno (sic) Stuart Little, em que os gatos parecem "fazer" coisas, filmando-os ao natural e adequando as cenas ao roteiro, quando não alterando-as eletronicamente.

O preconceito antigatos já chegou também à publicidade e à televisão. Há pouco mais de dois anos, um comercial da Light sobre a sua campanha contra os "gatos" (os fios que os espertos puxam ilegalmente dos postes públicos) mostrava um bando de cães assassinos farejando becos e vielas, como se procurassem gatos de verdade. A trilha sonora era uma cacofonia de uivos e rosnados, de inenarrável brutalidade. Pensei na bestial satisfação dos donos desses cães ferozes ao assistir ao comercial: deviam ter ganas de sair com suas feras pelas ruas, em busca de gatos de verdade, como se estivessem contribuindo para o extermínio de uma praga. Na França, um comercial desses seria impensável. Nos EUA, ele talvez fosse concebível, mas não ficaria dois dias no ar - várias sociedades se mobilizariam para protestar contra o estímulo à selvageria e à perseguição de um animal por outro.

No lado positivo, gato, como se sabe, é uma palavra também usada no sentido do homem charmoso e atraente, que as mulheres desejam. Quem manifesta esse rancor a gatos no cinema, nos quadrinhos ou nos comerciais deve ser alguém a quem uma mulher nunca chamou de gato. E, antes que me esqueça, morte ao Piu-Piu.

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